A flexibilização da conduta vedada prevista no artigo 73, inciso IV e §§ 10, da Lei n.º 9.504/97em razão da pandemia

Desde a redemocratização do país, com o resgate do exercício pleno dos direitos políticos, assim como a participação ativa da população nos pleitos eleitorais, vislumbra-se uma preocupação por parte da sociedade como um todo na defesa de eleições limpas e sem abusos dos seus atores políticos.

 

Essa busca pela lisura das eleições, aliada à consciência de que o voto consiste no mais forte exercício de cidadania, fez com que os legisladores pátrios elaborassem um plexo de normas jurídicas para proibir o abuso de poder político e econômico no período eleitoral.

 

Talvez uma das regras mais famosas do ano eleitoral é a vedação de distribuição gratuita de bens ou valores pelos agentes públicos, assim como a instituição de benefícios custeados ou subvencionados pela Administração Pública previstas no artigo 73, inciso IV e §10 da Lei nº 9.504/97.

 

A aplicação da regra que veda a distribuição gratuita de bens e serviços deve ser interpretada com cuidado. Não se trata de impedir as ações sociais, mas sim de não permitir o uso político delas, sendo possível notar que em ambos dispositivos, temos dois núcleos distintos de incidência: distribuição gratuita de bens públicos e distribuição gratuita de serviços. A supracitada regra, contudo, não é absoluta, podendo ocorrer a prática dos atos acima descritos desde que ocorra a decretação de calamidade pública, de estado de emergência ou se os programas sociais autorizados em lei já estiverem em execução orçamentária no exercício anterior ao da eleição.

 

O ponto nevrálgico desse comentário reside justamente na exceção do artigo, qual seja os casos de calamidade pública, tal qual o que vivemos em razão da COVID-19.

 

Desde o início das ações que visam minorar os efeitos da pandemia, sobretudo em prol dos mais carentes, talvez a que mais se destaque é a distribuição de cestas básicas e gêneros alimentícios, como tem ocorrido em larga escala no país.

 

Sabemos que em muitos casos tais caridades são feitas de forma regular, sem abusos de quem a oferta, mas também temos ciência que em tantas outras ocasiões, as doações vêm recheadas do uso promocional – e indevido – da imagem do doador, tal como ocorreu no Estado de Alagoas.

 

Não se discutirá no presente expediente o abuso de poder decorrente de tais usos promocionais, objeto de um outro estudo, mas a compreensão da real possibilidade de distribuição de cestas básicas e eventualmente outros benefícios a quem efetivamente precise, de forma organizada e alinhada com as autoridades, especialmente o Ministério Público Eleitoral.

 

Entretanto, algumas procuradorias eleitorais, em descompasso com a situação vivida no país, e se valendo a literalidade dos artigos acima citados, estão encaminhando recomendações às prefeituras e câmara de vereadores com o objetivo de sustarem a distribuição de bens e serviços à população carente afligida pela pandemia.

 

A guisa de exemplo, o Ministério Público Eleitoral do Estado de São Paulo editou a Instrução PRE-SP n° 01/2020, orientando os promotores eleitorais a expedirem recomendações às prefeituras para que as mesmas se abstenham de distribuir, ou permitir a distribuição, as pessoas físicas ou jurídicas de bens, valores e benefícios durante o ano de 2020, como doação de gêneros alimentícios, ressalvadas as exceções previstas no art. 73, §10 da Lei nº 9.504/1997, repetindo o óbvio do que já está na lei das eleições.

 

Mais à frente recomenda que os presidentes das câmaras de vereadores “não deem prosseguimento nem permitam votação, em 2020, de projetos de lei que ensejem a distribuição gratuita de bens, valores e benefícios a pessoas físicas ou jurídicas, ante a vedação da Lei nº 9.504/1997”, evidenciando-se a nulidade de tal instrução ministerial.

 

Diz-se isso pois, entendemos que não há espaço para nenhum tipo ação fiscalizatória com o intuito de ceifar a função constitucional precípua do Poder Legislativo, qual seja a de legislar, sendo que há meios judiciais cabíveis para eventual correção de abusos.

 

Nesse compasso, destaca-se que eventual disciplina e regulamentação pelo Poder Legislativo Municipal de como se daria, por exemplo, a execução da distribuição gratuita de bens, valores e benefícios não levaria, ao nosso sentir, a nenhum tipo legal que ensejasse a cassação do mandato dos vereadores.

 

Como prova inequívoca da possibilidade de tanto o Poder Executivo, quanto o Poder Legislativo, atuar no combate aos efeitos sistêmicos da pandemia em curso, mediante a distribuição de alimentos, cite-se a promulgação da Lei Federal nº 13.987/2020, publicada em 07 de abril de 2020, que permitiu categoricamente a distribuição de gêneros alimentícios aos pais ou responsáveis de estudantes matriculados na rede pública de ensino.

 

Na mesma linha de intelecção, o próprio artigo 73, §° 10 da Lei 9.504/97 também excetua os casos de calamidade pública, casos em que o Ministério Público deverá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.

 

Qual a razão, então, para que algumas recomendações do Ministério Público Eleitoral venham ceifar tais permissões? Qual o limite fiscalizatório das recomendações expedidas pelo parquet eleitoral? As recomendações detêm força jurídica para alterar o conteúdo da legislação eleitoral e até de competências constitucionais?

 

Não advogamos a ideia de alijar o Ministério Público do acompanhamento das medidas administrativas e legislativas executadas pelos poderes municipais, pois a presença desta instituição é de grande valia para coibir excessos do administrador público mal-intencionado. O que defendemos é que a fiscalização esteja em compasso com o quanto disciplinado pela legislação vigente, respeitando-se as prerrogativas básicas de cada órgão, atuando, assim, em conjunto para um fim comum, qual seja, a diminuição dos efeitos nefastos do Covid-19 na população carente.

 

Nesta toada, devemos trazer à baila a orientação técnica n° 001/2020 editada pela Procuradoria Regional Eleitoral do Estado da Bahia na qual estabelece diretrizes para a atuação das Promotorias Eleitorais nos municípios baianos, destacando que as ações fiscalizadoras deverão ocorrer dentro dos contornos do artigo 73 da lei das eleições, “com vistas a inibir o uso eleitoreiro das ações do Poder Público, particularmente as que possam afetar a isonomia entre os candidatos, bem como para assegurar o efetivo atendimento à população em situação de vulnerabilidade”. Nesse caso, a atuação do Ministério Público Eleitoral ficará adstrita à verificação de abuso ou não dos agentes políticos, não impedindo a atuação regular tanto do Poder Legislativa quanto do Executivo, diferenciando-se, portanto, da recomendação feita pela Procuradoria Regional Eleitoral e São Paulo, caminhando, assim, para uma atuação por parte da PRE-BAHIA em consonância com os ditames constitucionais.

 

Diante dessas considerações, a conclusão inexorável em tempo de pandemia é que há, sim, espaço para flexibilização da interpretação da conduta vedada prevista no artigo 73, inciso IV e §§ 10º, da Lei n.º 9.504/97, seja em razão da exceção prevista na própria legislação eleitoral e com o necessário acompanhamento pelo Parquet Eleitoral, para que assim possa a Administração Pública distribuir em caráter excepcional gêneros alimentícios a população carente, com o acompanhamento devido dos órgãos de fiscalização.

 

LUCAS RIBEIRO                                                                    

Advogado. Palestrante. Procurador do Município de Candeias (BA). Pós-graduado em Direito Público e Municipal pela Faculdade de Direito da UFBA/Ucsal. Pós-graduando em Direito Eleitoral pela PUC/Minas Gerais. Presta assessoria jurídica a Prefeituras, Câmara de Vereadores e perante os Tribunais de Contas da União, Estado e Municípios.

 

 

FREDERICO MATOS

Advogado. Pós-graduado em Direito Eleitoral pela Faculdade Maurício de Nassau. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UFBA. Membro do Conselho de Administração do DESENBAHIA. Ex-membro do Conselho de Administração da Itaipu Binacional.

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