Passaporte de Vacinação: O poder-dever dos Prefeitos

Discussão atualíssima em que se coloca em xeque a supremacia do interesse público em face do particular, a ponderação de princípios constitucionais e a capacidade (ou não) do Estado intervir em situações extremas: esse é o cenário que reside o tão falado “passaporte de vacinação”.

 

Não discutiremos neste expediente, por óbvio, o citado passaporte pela ótica político-ideológico, mas, tão somente, a possibilidade dos(as) Prefeitos(as) exigirem-no quando e se assim entenderem. Passemos à análise de alguns fatos anteriores ao cerne da questão.

Logo no início da pandemia, em abril/2020, o Supremo, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.341, referendou a competência de estados e municípios de tomar medidas com o objetivo de conter a pandemia do coronavírus, o que, ao nosso sentir, apenas ratifica o que já há muito é sabido a respeito da competência comum[1] dos entes federativos em promover o direito à saúde e a vida, norma essa de eficácia plena e aplicabilidade imediata, conforme o disposto no art. 5º, § 1º da Constituição, não dependendo de qualquer ato legislativo para que seja efetivada pela Administração Pública[2].

 

O direito à saúde é, portanto, um direito fundamental[3], de cunho social, exigível perante o poder público, a merecer efetividade do Poder Judiciário, eis que malferido pelo Poder Executivo.

 

Nesta linha, diversos municípios publicaram leis e/ou decretos que condiciona, como “medida de interesse sanitário de caráter excepcional”, a comprovação de vacinação contra a COVID-19 para frequentar determinados locais públicos, tal como o Decreto 49.335/2021 do Município do Rio de Janeiro, publicado em 27/08/2021:

Art. 1º Ficam condicionados, a partir de 1º de setembro de 2021, à prévia comprovação de vacinação contra a COVID-19, como medida de interesse sanitário de caráter excepcional, o acesso e a permanência no interior de estabelecimentos e locais de uso coletivo.

  • 1º A vacinação a ser comprovada corresponderá a 1ª dose, a 2ª dose ou a dose única, em razão do cronograma instituído pela Secretaria Municipal de Saúde – SMS, em relação à idade da pessoa.
  • 2º As condições previstas no caput se aplicam aos seguintes estabelecimentos e locais de uso coletivo:

I – academias de ginástica, piscinas, centros de treinamento e de condicionamento físico e clubes sociais;

II – vilas olímpicas, estádios e ginásios esportivos;

III – cinemas, teatros, salas de concerto, salões de jogos, circos, recreação infantil e pistas de patinação;

IV – atividades de entretenimento, exceto quando expressamente vedadas;

V – locais de visitação turísticas, museus, galerias e exposições de arte, aquário, parques de diversões, parques temáticos, parques aquáticos, apresentações e drive-in;

VI – conferências, convenções e feiras comerciais.

 

Em 29/09/21, o Des. Paulo Rangel do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu monocraticamente nos autos do HC Nº 0070957-89.2021.8.19.0000 pelo deferimento da liminar, em caráter coletivo, a cassação do decreto fluminense, na parte referente “à proibição de circulação de pessoas pelos locais em que cita sem a carteira de vacinação”, trazendo, dentre outras razões de decidir, que a liberdade de locomoção está sendo cerceada, que “a carteira de vacinação é um ato que estigmatiza as pessoas criando uma
marca depreciativa e impedindo-as de circularem pelas ruas livremente, com nítido
objetivo de controle social
” e, por fim, que como não há as hipóteses previstas no artigo 5º, XV, não haveria como o decreto impedir as pessoas de circularem livremente, denominando o passaporte como “ditadura sanitária”.

 

Provocado pela Procuradoria Municipal do Rio de Janeiro, em 01/10/2021, o Supremo, na pessoa do Min. Luiz Fux, decidiu por suspender os efeitos de tal decisão, tornando novamente válido o Decreto 49.335/2021 do Município do Rio de Janeiro, com considerações no sentido de que há de ser observada a “predominância de interesses” uma vez que “a leitura do ato normativo municipal impugnado na origem revela fundamentação relacionada à necessidade de contenção da disseminação da COVID-19 e à garantia do adequado funcionamento dos serviços de saúde, além de embasamento técnico constante da Resolução Conjunta SES/SMS nº 871,  de 12 de janeiro de 2021 (preâmbulo do Decreto nº 49.335)”.

 

Em outras palavras, prestigiou, dentre os interesses em conflito, o direito à saúde, à vida, a predominância do interesse público em detrimento do particular e a autonomia municipal entre a liberdade de locomoção e é justamente aqui que reside o ponto nevrálgico deste breve expediente, sobretudo porque os Gestores Municipais, em inglória e talvez inédita posição desde a CF 1988, podem-e-devem editar normas que venham resguardar, proteger, monitorar e conter o avanço da pandemia que atualmente já ceifou mais de 600 mil (seiscentas mil) vidas.

 

O poder-dever outorgados ao administrador público não é uma faculdade, ao revés, é uma obrigatoriedade irrenunciável outorgada aos mesmos, e, nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho[4], “as prerrogativas públicas, ao mesmo tempo em que constituem poderes para o administrador público, impõem-lhe o seu exercício e lhe vedam a inércia, porque o reflexo desta atinge, em última instância, a coletividade, esta a real destinatária de tais poderes.

 

Diante desse cenário, será o(a) Gestor(a), a partir da análise dos dados da sua Secretaria Municipal, da sua capacidade de contenção do avanço da COVID-19, da sua autonomia administrativa, política e organizacional que decidirá a medida aplicável a SUA realidade e não outro poder, sob pena de ingerência indevida nos atos do Poder Executivo.

 

Ponderar os interesses e equilibrar as ações municipais nunca foi tão difícil como durante a pandemia, mas, o que não há dúvida, ao nosso sentir, que prestigiar a saúde coletiva não é – nem de longe – ato desproporcional ou desarrazoado, como, aliás, já se é largamente feito em diversos países do mundo quando se requer, como requisito inegociável de entrada naquele território, a comprovação de vacinação por febre amarela, por exemplo.

 

Lênio Strek[5], acertadamente sobre o tema disse que “a liberdade das pessoas tem limites. Você não está proibido de ir a qualquer lugar, segundo a Prefeitura do Rio. Basta que você se vacine. Mas se você não quiser se vacinar, você tem ônus decorrentes da convivência social. Direito à saúde. Eis a questão” e é a corrente que nos filiamos.

 

Veja que a discussão da “liberdade de locomoção” se torna absolutamente pequena em detrimento da comprovada diminuição do número de morte e casos graves da COVID-19 a partir da vacinação, e, por essa razão, a pauta não é (ou não deveria ser) a impossibilidade do poder-dever do(a) Prefeito(a) em condicionar a entrada a espaços públicos de comprovação da vacinação, como realizado no município do Rio de Janeiro, em caráter excepcional e provisório, já que a este último que foi conferida a decisão de como agir e não, repita-se, outro Poder.

 

LUCAS RIBEIRO

Advogado. Especialista em Direito Público e Municipal pela Universidade Católica do Salvador e Direito Eleitoral pela PUC/MG. Presta assessoria jurídica a Prefeituras, Câmara de Vereadores e perante os Tribunais de Contas da União, Estado e

[1] “Em relação à saúde e assistência pública, a Constituição Federal consagra a existência de competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23, II e IX, da CF), bem como prevê competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, da CF), permitindo aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (art. 30, II, da CF); e prescrevendo ainda a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (art. 198, CF, e art. 7º da Lei 8.080/1990), com a consequente descentralização da execução de serviços, inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 6º, I, da Lei 8.080/1990)” STF, ADPF 672, Min. Alexandre de Moraes.

[2] O legislador infraconstitucional, por meio do art. 2°, da Lei nº 8.080/1990, consignou que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

[3] “Os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos subjetivos inalienáveis, constitucionalmente consagrados, cujo primado, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, que reserva especial proteção à dignidade da pessoa humana, há de superar quaisquer espécies de restrições legais”. STJ, 1. T, REsp 836913/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 31.05.2007, p. 371.

[4] Carvalho Filho, José dos Santos Manual de Direito Administrativo / José dos Santos Carvalho Filho. –  33. ed. – São Paulo: Atlas, 2019

[5] https://www.conjur.com.br/2021-set-30/lenio-streck-algoritmo-nao-proibiria-passaporte-vacina?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook

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